Os feudos do MP

O PGR, Pinto Monteiro, na entrevista ao Sol-Tabu, referiu-se ao Ministério Público em modo equívoco. Disse que o MP é uma estrutura hierarquizada – é assim que está na lei. Mas não é assim na prática: o MP é um poder feudal neste momento. Há o conde, o visconde, a marquesa e o duque”.

O actual procurador- geral da República, desde 1979, fez carreira essencialmente na área cível”. Os anteriores ocupantes da cadeira, foram responsáveis também pela área penal, directa ou indirectamente e o Ministério Público, lida essencialmente com essa área delicada da nossa sociedade.

O actual PGR, mostra esse lado civilista, descontraído e sem grandes preocupações em provar seja o que for, porque “ se amanhã deixar de ser procurador-geral, volto a ser conselheiro”, o que já era há oito anos e meio.

Talvez por isso, no último ano, deparou com a outra magistratura, a do MP que é estatutariamente paralela à de juiz e passou a chefiar a hierarquia da mesma.

Não obstante aquela afirmação polémica e que causa perplexidade na magistratura do MP, o actual PGR, afirmou na mesma entrevista acreditar na autonomia do MP, o que o leva a defender a formação comum, ab initio, dos magistrados. Pinto Monteiro opõe-se à funcionalização da magistatura do MP.

Hoje, no programa da TSF em que intervêm ouvintes em directo, um juiz desembargador, Eurico Reis , sujeito muito susceptível e que não autoria que se brinque com o que vai dizendo por aí, declarou-se amigo do actual PGR; defendeu-o da polémica sobre as escutas, de modo judicioso, e ao mesmo tempo declarou perceber e justificar o que Pinto Monteiro dissera sobre a magistratura do MP ser um poder feudal.

O referido juiz, especializado na área cível, habitual comentador da TSF, logo de manhã e que conjuntamente com outro colega de profissão, Rui Rangel, constituíram recentemente uma nova associação de magistrados judiciais, de carácter sindical, reafirmou velhas ideias sobre a magistratura do MP. Que é mesmo um poder feudal e que se assim não fosse, não estaríamos a assistir a determinadas coisas, que a entrevista do PGR reflecte e que este só falou publicamente porque esgotou a possibilidade de falar dentro da instituição.

Foi assim mesmo que eu ouvi. Defendeu publicamente a extinção do Conselho Superior do Ministério Público e reafirmou a necessidade de responsabilização hierárquica e subordinação dos magistrados de escalão inferior aos superiores., de modo que não explicou, como de costume, mas que deixa adivinhar a ideia de chefe, de respeitinho e de ordem nova.

Rui Rangel, mais tarde na mesma TSF que parece não conhecer outros juízes a quem entrevistar, depois destas declarações, reafirmou-as no mesmo sentido, atirando ainda outras achas para esta fogueira que ambos se têm esforçado por não deixar esmorecer, sem que alguém lhes oponha contraditório condigno. Sente-se muito encolher de ombros, que apesar de tudo faz muito barulho.
Estes juízes que se declaram amigos e defensores entusiastas do actual PGR, em confronto com o anterior que notoriamente execravam, deixam perpassar naquilo que vão dizendo, uma ideia de hostilização do MP, entendendo , na prática do que vão dizendo, esta magistratura como subalterna e necessitada de arrimo.

Ora este arrimo pretendido, pode significar uma de duas coisas: a perda de autonomia face ao poder político-legislativo, o que carece de revisão constitucional e os coloca contra o entendimento explícito daquele que dizem defender e ainda a estruturação do poder hierárquico de modo legalmente diferente do actual, que necessita igualmente de revisão legal, no código processual recentemente revisto e no estatuto respectivo.

Nesta última vertente, não se percebe a essência da argumentação dos ditos especialistas do cível, sempre prontos a palpitar ideias frescas sobre penal e processo penal.

A intervenção hierárquica do PGR, efectua-se no interior da estrutura do MP que é complexa e compreende vários órgãos, o mais importante dos quais é a Procuradoria Geral da República, que compreende ainda Conselho Superior do MP, precisamente aquele que o tal juiz quer ver extinto, mas não fundido com o Conselho da Magistratura, como acontece na Itália, com bons resultados. O procurador- geral da República é apenas o presidente desse órgão de cúpula do MP.

Para além disso, a própria Constituição afirma o estatuto do MP como um corpo de magistrados “responsáveis, hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei, cuja nomeação, colocação, transferência e promoção dos agentes do Ministério Público e o exercício da acção disciplinar competem à Procuradoria-Geral da República.”

A composição do MP e da Procuradoria em particular, não comporta a ideia de “chefe”, de caudilho, de general comandante, operativamente actuante como tal e com a informalidade de comando que é própria a essas organizações, com obediência imediata e permanente às ordens dele emanadas. Quem disser ou pensar o contrário, terá que repensar e desdizer-se e quem quiser mudar o actual estado de coisas, deverá antes do mais, justificar porquê, atendendo em primeiro lugar ao interesse do povo em geral.

Ao PGR compete uma série de atribuições, entre as quais, a de “inspeccionar ou mandar inspeccionar os serviços do Ministério Público e ordenar a instauração de inquérito, sindicâncias e processos criminais ou disciplinares aos seus magistrados”.

Mas o poder disciplinar sobre os magistrados em concreto, esse, pertence ao Conselho Superior ( a que o PGR aliás, preside) , nestes termos:

A gestão de quadros e a acção disciplinar relativas à magistratura do Ministério Público pertencem ao Conselho Superior do Ministério Público, ao qual compete: a) nomear, colocar, transferir, promover, exonerar, apreciar o mérito profissional, exercer a acção disciplinar e, em geral, praticar todos os actos de idêntica natureza respeitantes aos magistrados e agentes do Ministério Público, com excepção do procurador-geral da República; “

Por aqui, será fácil de entender, porque é que o PGR, não tem o poder de mandar directa e imediatamente sobre os seus subordinados: por causa da própria lei que estabelece esses limites em função da noção de autonomia que se caracteriza, simplesmente, por isto: “pela existência de mecanismos de governo próprio, pela vinculação dos magistrados a critérios de legalidade e objectividade e pela sua exclusiva sujeição às directivas, ordens e instruções previstas no Estatuto do Ministério Público.”

Confuso? Não: democrático e para atenuar a característica monocrática do MP. Retirando-se ao PGR o poder de exercício disciplinar e ainda de apreciação do mérito profissional. Estes dois poderes, pertencem ao CSMP.

É isto que aqueles dois juízes, como muita gente que opina e palpita de modo avulso, não aceitam nem aparentemente percebem.

Daí ao comentário sobre feudos e poderes territorialmente conquistados, vai um passo. Porque os órgãos são colegiais,- DCIAP, DIAP, Conselho Consultivo, NAT, DCE, Inspecção do MP, Procuradorias- gerais distritais etc. - constituídos por magistrados de carreira e que obedecem todos ao mesmo princípio da legalidade e objectividade.

Há quem não entenda, quem não aprecie e quem não tenha sequer alternativas a isto, senão o velhinho ditado: manda quem pode; obedece quem deve. Foi no tempo de Salazar, de ditadura e autoritarismo, mas se falarem nisso, renegam. O ditado- que não a mentalidade.

Aditamento, em 23.10.2007:

Um dos que parece não entender esta engrenagem de poderes balanceados, é o director do Público, José Manuel Fernandes, no editorial de hoje.

Escreve que "das duas uma: ou tem poderes, como procurador-geral , para colocar a casa em ordem, ou deve reivindicar esses poderes. Ou assumir que o problema é outro: falta de autoridade para se tornar no líder natural de uma casa que exige uma liderança forte.

Há grandes equívocos nesta ordemd e considerações. O primeiro é um insustentável apelo a uma ordem nova que segrega autoritarismo por todos os poros. Foi essa a questão que conduziu a que no Estatuto dos magistrados, fosse subtraído ao PGR o poder disciplinar ou de classificação dos magistrados. Será que o director do Público e quem pensa como ele - e são muitos!- entende porquê? Principalmente, entenderá as razões que subjazem e justificam o poder mitigado do PGR, em relação aos magistrados do mesmo ofício? Saberá José Manuel Fernandes, por que razões assim se entendeu noutras paragens e latitudes?

Poder ou não poder disciplinar- é essa a questão. Quem adianta razões que transcendam o mero palpite opinativo, tipo Eurico Rangel? Quem estabelece o paradigma certo e o modelo correcto?

Mais ainda: que razões justificam neste momento que se coloque a questão, nestes termos simplistas de reivindicar poderes para o PGR para se "tornar líder natural de uma casa que exige uma liderança forte? "Liderança forte?" É o que já disse: a ideia antiga permanece actual, nos espíritos afeiçoados ao poder de mandar. Dantes detestavam o poder ditatorial e combatiam-no, indo parar a prisões por causa disso. Uma vez que se apanham no poleiro, toca a fazer exactamente o que vituperavam e combatiam: mandar com "liderança forte". Manda quem pode; obedece quem deve. A mentalidade antiga tem muita força.


Publicado por josé 23:10:00  

2 Comments:

  1. Patricio said...
    "Há o conde, o visconde, a marquesa e o duque”.
    ´
    Boas josé, já algum tempo que tenho acomapnhado os seus textos, preferencialmente os referentes ao MP/justiça, de um modod geral entendo as suas ideias, mas desta vez confesso que aminha ignornacia não me entender quem é o Conde, o Visconde , a marquesa e o duque. Agradecia se me podesse ilucidar.
    Um abraço amigo
    josé said...
    Então o apatrício lê o texto e fica sem perceber?

    Aí vai um desenho:

    São os dirigentes dos departamentos do MP que elenquei e ainda algumas figuras gradas que estão sempre na berlinda como os sindicalistas.

    Não há mais. O problema grave é que a maioria das pessoas, incluindo o director do Público, não quer entender que o MP não se dirige como quem dirige um jornal.

    É um problema de formação cívica que julgam ter mas mostram que ainda não têm efectivamente.
    Não percebem a estrutura do MP, acham que um PGR deve ser chefe e pronto.
    Esquecem que chefes há vários e todos estão sujeitos ao mesmo chefe inefável: a lei.

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