Mitologias fundamentais

A Fundação Calouste Gulbenkian, completa neste mês de Julho, 50 anos!
Filomena Mónica, no seu Bilhete de Identidade, nas três páginas, onde descreve como a sua mãe lá arranjou emprego, nos anos cinquenta, explica melhor a essência da Fundação, no tempo de Salazar, do que o JL na edição especial desta semana, dedicada à efeméride, o consegue fazer, em 20 páginas! É obra? É. Exemplar.
Para mim e certamente milhares de outros portugueses, nascidos nos cinquenta e sessenta, a Fundação representou algo muito simples: a possibilidade de ler, sem pagar por eles, alguns livros clássicos da literatura mundial. Primeiro, os juvenis e depois, aos poucos, algumas obras de vulto dos grandes escritores da Humanidade.
A filantropia da Gulbenkian, a esse respeito, manifestava-se de modo itinerante. Mensalmente, uma carrinha Citroën parava ao ao pé da porta da escola primária, porque a professora deixava e recomendava a leitura de Emílio Salgari, Walter Scott e também…Júlio Verne, Adolfo Simões Müller e João de Barros, entre muitos outros. Mediante inscrição e cartão de sócio, estava garantido o direito a empréstimo, para leitura caseira, de alguns livros que se trocavam por outros, no mês seguinte. As histórias que se liam, habituavam quem se predispunha ao tempo de ler.
Já então havia tv, mesmo a preto e branco, com festivais, filmes aos domingos e touradas às quintas. Jogos, também, embora mais participativos e sociais do que hoje serão os das playstation e outros nintendo. O berlinde, a rela, o mata e o futebol com partidas renhidas e disputadíssimas alternavam com as tarefas de ajuda em casa, nas lides, ou até nos campos, no caso das aldeias onde a ruralidade do cultivo intensivo era a realidade diária. Nesses lugares recônditos e afastados de cidades, a leitura dos livros “da biblioteca”, era vulgar entre a “canalha” da escola que ia com as vacas ou ovelhas.
A par dos livros, a “biblioteca” editava um boletim periódico, com duas dúzias de páginas, onde alguém, de modo completamente anónimo, escrevia textos concisos e ilustrados, sobre temas culturais de alto coturno.
As primeiras ideias gerais sobre a cultura greco-romana, com iconografias variadas e sobre a evolução do teatro, poesia, história, filosofia, literatura em geral e autores em particular, foi aí que muitos as viram e leram.
Com destaque particular para a cultura clássica, os temas suscitavam curiosidades em quem a teria e abriam portas para os livros de base que se recomendavam.
Hoje e numa altura em que se questiona a oportunidade e validade do ensino dos temas da cultura clássica, tal como eram ensinados há décadas atrás, os boletins da “biblioteca” eram uma espécie de guia que já não há.
Nesses tempos recuados, em que alguns ainda hoje perscrutam os sinais de uma longa noite, politicamente estrelada por Salazar e Caetano, quem mandava nas “bibliotecas” e na Gulbenkian, não escondia a cultura clássica de quem a quisesse entender. O que também se reflectia no ambiente cultural geral.
E assim, podiam facilmente encontrar-se em catálogos livreiros, obras sobre o classicismo greco-romano. A editorial Aster, anunciava em 1969, no seu catálogo, uma obra mestra: Paideia, de Werner Jaeger, académico alemão, falecido em 1961, aluno da escola hegeliana e que saiu da Alemanha durante a guerra, fixando-se nos Estados Unidos . A Paideia de 1969 custava…300$00( como comparação, a editora Ulisseia vendia nessa altura o livro de Céline, Viagem ao Fim da Noite, a 65$00 e hoje vende-o a 19 euros) e era certamente livro recomendado nas faculdades de Letras. Ainda o será, hoje? Parece que sim, mas será essa obra uma referência para quantas pessoas, em Portugal?
Para Maria Helena da Rocha Pereira sê-lo-á, certamente. Como o seria para o padre Manuel Antunes, António José Saraiva ou Paulo Quintela, Vitorino Nemésio e alguns outros vultos que marcaram o ambiente cultural português na segunda metade do séc. XX.
Aquela especialista em Antiguidade Clássica e professora na Universidade de Coimbra, e que nos anos setenta e oitenta dirigiu a publicação da série de clássicos gregos e latinos na editora Verbo, disse em 6 de Fevereiro de 2006, ao Público que “É preciso não esquecer que a ciência actual assenta na ciência grega, principalmente, e também a própria teoria política parte da antiguidade grega e depois tem acrescentos- digamos assim- da antiguidade romana.” E ainda disse que “temos um grupo, quer em Coimbra, quer em Lisboa, de classicistas de grande qualidade.”
Pois seja! Só teremos a ganhar em ver as obras que de lá sairão!
Dantes, nos anos sessenta, os críticos e recenseadores literários, escreviam nos jornais com referências a essa cultura de base helénica e com a naturalidade de poderem ser compreendidos. Hoje, é raro, parecendo que a elite classicista se reúne em secretos conciliábulos universitários.
O que é que terá mudado, nestes anos, para que os cultores dos clássicos, se fiquem já pelas seitas e nem sequer apareçam nos jornais, em suplementos culturais?
Segundo um autor alemão, Dietrich Schwanitz,( Cultura, d.quixote, 2004) o que mudou foi o cânone de leituras que dantes ligava o estudo dos clássicos entre a escola e a Universidade.E sugere abertamente o regresso da transformação da expressão escrita que “ é muito mais exigente no que toca aos requisitos lógicos, ao ordenamento das ideias, à correcção sintática, à estrutura do texto e ao nexo entre as frases e a plausibilidade geral”.
Segundo o autor, o ensino transformou-se num reino de trevas, onde reinam a insegurança e a grande confusão e se experimentam sempre modelos novos. E como um dos remédios possíveis, apresenta uma metafórica referência a um dos mitos gregos: Medusa, uma das górgonas, tem um olhar mortífero; porém, se for confrontada com um espelho, mata-se a si mesma!

Ponham espelhos nos edifícios do Ministério da Educação!

Publicado por josé 23:48:00  

6 Comments:

  1. António Viriato said...
    A Cultura Clássica está hoje remetida a um gehto, como envergonhada de se situar tão acima do saber vulgar, da dita cultura moderna, que julga tudo poder relativizar, citando Einstein, sem jamais o ter compreendido, nem tendo, para isso, cultura científica que tal lhe possibilite.De resto, esta, a cultura científica, também se há-de achar em breve condenada : primeiro porque é rebelde à democracia do entendimento, exigindo forte investimento em inteligência, em vontade, em perseverança e, insuportavelmente, em tempo, de que é grande consumidora. Tudo coisas que o espírito dito moderno irremediavelmente abomina !
    timshel said...
    Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
    timshel said...
    Quando era miúdo tive a sorte de viver perto de uma bibliotce municipal lindíssima, de um imenso romantismo, e era lá que nas manhãs de Verão, ainda pelo fresquinho me ia desabastecer e reabastecer com novas cargas de livros.

    Qunado acabei o curso e comecei a dar aulas numa terra distante tomei conhecimento pela primeira vez com as carrinhas cinzentas da Gulbenkian e lá ia todas as semanas repetir o ritual que já tinha estabelecido na minha vila natal (a obra do Graham Greene, por exemplo - entre outros - ficou assim indelevelmente asociada à imagem de uma carrinha cinzenta).

    Na molhada de pessoas que, como eu, volteavam em redor da carrinha encontravam-se muitos alunos meus.

    Não sei se a carrinha, tal como o resto, ainda existe.
    maloud said...
    Já não há as carrinhas cinzentas, Timshel. A Fundação, na altura, explicou a razão do seu fim.
    Fernando Martins said...
    Mas é uma pena. A F. Gulbenkian foi um imenso Ministério da Cultura durante anos e hoje parece meio envergonhada desse serviço.

    Eu, que vivia numa aldeia do interior (do Distrito da Guarda) pude ler imensos textos (Salgari, os tarzans, terror, e muitos mais) sem os quais não era o que sou hoje (para o bem ou para o mal...). Foi uma tristeza quando acabaram com esse serviço público de 1ª qualidade das carrinhas-biblitecas.
    Ljubljana said...
    Em miúdo recordo-me das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, nas suas carrinhas inconfundíveis, revestidas a chapa canelada longitudinalmente, com o corredor central ladeado de estantes repletas de livros, com aquela pala lateral que se erguia, deixando livre o acesso ao estreito balcão de atendimento. Muitos miúdos corriam para elas, mas depois de abertas, poucos éramos os que de lá trazíamos livros para casa. Para a maioria das pessoas (na altura, vivia em Barcelos) os poucos períodos livres eram ocupados a rematar obra (enormes sacos de algodão repletos de peças de vestuário que eram entregues pelas muitas e na altura prósperas empresas têxteis da região para serem rematadas em casa, trabalho feito por toda a família, trabalho subcontratado à unidade, sem compromissos fixos para as empresas junto das muitas pessoas que o faziam), não restando tempo para além dos deveres da escola e da brincadeira na rua.

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