SIRESPgate - o escândalo
uma história portuguesa...

António Costa ainda não perdeu de vez todos os talentos que em tempos fizeram com que muitos lhe diagnosticassem um futuro político radioso. Assim, e por contraponto à inflexibilidade do seu colega das Obras Públicas que teima em não publicar os estudos secretos que justificam a Ota, António Costa, e o MAI, disponibilizaram para consulta pública alguma da documentação que alegadamente sustenta a reabilitação do SIRESP (ver contexto aqui e aqui).


A leitura da documentação disponibilizada é absolutamente fundamental e dá-nos uma visão absolutamente aterradora do funcionamento do nosso Estado, do nosso Estado de Direito.

Assim, temos a Procuradoria Geral da República que num parecer do seu Conselho Consultivo, e que apenas - detalhe curioso - passou graças ao voto de qualidade de Souto Moura, que desempatou (a redação original não deslumbrava qualquer sombra de paralegalidade), a notar inequivocamente o surrealismo da alegação da urgência do concurso do SIRESP, baseado na sua utilidade para o Euro/2004, o procedimento iniciou-se depois, da sua urgência no combate a incêndios, o caderno de encargos define, como zonas de implementação inicial, e prioritária, áreas urbanas e arrabaldes de estádios de futebol.

Temos um curioso parecer da Inspeção Geral de Finanças a enumerar...

o não conhecimento por parte da IGF quanto ao grau de aderência à realidade do levantamento material das necessidades efectuado (não terá sido adequadamente validado a nível técnico pelo que as referidas necessidades não se apresentarão totalmente credíveis), o qual deveria ter por base uma listagem exaustiva, devidamente quantificada e valorizada, das diversas naturezas de materiais/equipamentos indispensáveis à implementação do projecto desde o início" (fls 5/33)
a falta de realização de um levantamento pormenorizado dos meios actualmente existentes, incluindo os custos suportados com o seu funcionamento, e com os custos que o Estado deixaria de ter com a implentação do novo sistema, possibilitando o apuramento das poupanças induzidas pelo mesmo; (fls 6/33)
a ausência de um estudo de viabilidade do novo projecto de investimento evidenciando designadamente:
  • os efeitos (custos e benefícios) esperados do mesmo, numa óptica financeira e social integradas;
  • os encargos a suportar por cada uma das entidades utilizadoras do novo sistema baseado na parceria público-privada, incluindo a própria entidade gestora
(fls 6/33)

a reconhecer que o prazo dado para apresentação de propostas do "Concurso" não era razoável porque ...
não se apresenta em consonância com a elevada complexidade do projecto e o alargado leque de competências e funções requeridas no seu âmbito (fls 28/33)

para, pelo meio, se ficar a saber, que o único candidato a apresentar proposta tinha generoso e patrioticamente ...
sabendo das actuais carências de equipamento de telecomunicações das forças de segurança, instalou a titulo gratuito e provisório, 11 estações que permitiram, durante a realização do Euro/2004 e ainda permitem à PSP e à GNR, utilizar tecnologia digital, de forma limitada na região do Algarve e nas cidades de Lisboa e Porto. Para aproveitar esta oferta a PSP e a GNR terão adquirido, em 2004, inúmeros terminais, em quantidade que a IGF desconhece (Fls 23/33 nota 13)

i.e. GNR e PSP dependem hoje em áreas fundamentais da generosidade do... único candidato.

para concluir que a proposta não "apresenta vantagens claras para o Estado " (fls 31/33), a menos que "nas vertentes técnica e jurídica se constatem vantagens que compsensem as incertezas económico-financeiras apuradas".

Depois vem a ANACOM, Autoridade Nacional de Comunicações, responder a um poético, e patético, questionário governamental, sendo que implicito nesse questionário está o fantasma de outro potencial interessado, e com outra tecnologia que não a TETRA. As respostas da Anacom são antológicas. Sobre se o SIRESP faz sentido, diz que sim, porque os políticos disseram que sim, e cita diversas resoluções do Conselho de Ministros, se um SIRESP nos moldes em que foi a Concurso, i.e. com uma rede própria, de raiz, ou o recurso às redes móveis existentes, bom, isso para a ANACOM depende... "Da análise e ponderação dos diversos elementos em presença", sendo que "qualquer das soluções é legal e tecnologicamente possivel" (fls 5/21). Já quanto à questão tecnológica da imposição da plataforma (Tetra), questão 3 (fls 7/21), a ANACOM, hábil, cita en passant alguns países europeus, do Norte da Europa, que "equacionaram" (sic), e equacionam, a hipótese de utilização das redes públicas, para de seguida, sem mais, os desvalorizar.

, ainda, um gurú do Instituto Superior Técnico a afirmar peremptoriamente que a opção por uma rede privada é uma opção política e que...
de um ponto de vista técnico, é possível portanto usar uma rede pública como ponto de partida para se establecer uma rede de comunicações de segurança e emergência, não sendo necessário que o Estado estableça uma rede própria (fls 6)

Um outro gurú, Rui Guerra, a enumerar inúmeras falhas , e a entender "questionável o modelo adoptado" (fls 49) e para finalizar há um último parecer a três mãos, que descobre que...
a adopção de um prazo muito curto e manifestamente insuficiente para a elaboração e entrega da proposta favorece o(s) concorrente(s) que tenham acesso a informação privilegiada, ou inside information e muitas vezes impede o aparecimento de mais do que uma proposta (fls 5)

De resto lamenta-se , mais um, pela ausência de estudos prévios, não vislumbra razões, findo o Euro' 04, para não procurar alternativas (fls 9), para concluir, no fim de tudo, que são decisões políticas.

E é, caro leitor, de uma decisão política que se trata, dos que estiveram antes e dos que estão agora, de quem se decidiu pelo sistema TETRA, porque sim, sem quaisquer estudo sério e prévio, sabendo que era, à partida, a solução mais cara, de quem não fez os trabalhos de casa e de quem pretende lavar as mãos. Uma decisão que não foi minimamente pensada nem estudada, sabe-se agora.

Não sei, provavelmente, nunca se saberá, formalmente, se houve, ou não inside information, se de facto houve ou não favorecimento a um candidato mas... aquela história do consórcio vencedor ter emprestado equipamento para o Euro é estranha, muito estranha, em primeiro lugar, porque o equipamento ainda é usado (!), e, em segundo lugar, porque, e segundo a IGF, a PSP e GNR realizaram investimentos (avultados) na aquisição de equipamento terminal, equipamento este apenas compatível com a generosidade e as regras do solitário consórcio vencedor.

António Costa ainda não perdeu de facto todos os talentos mas ou julga que ninguém tem paciência para ler, neste Agosto infernal, a documentação toda, ou deve pensar que todos se intimidam pelo paleio, pelo legalês ou pelo tecnocratês, deve julgar que são todos parvos, mas está errado.

Parvo, na melhor das hipóteses, só pode ser, quem, em consciência, depois de ler toda a documentação diponibilizada acha que está tudo bem e avança. Porque se não é parvo é negligente, porque não leu a própria documentação que disponibilizou, ou não a compreendeu, o que se afigura um problema grave de literacia, ou, pior, assinou de cruz...

Resta, a ele e a nós, a fé, a enorme fé ...
Por outras palavras, não só a concepção, projecto, fornecimento, montagem e construção, deverão ser entregues, nos termos do Caderno de Encargos, a uma sociedade anónima, mas ainda a gestão e manutenção, o que levanta questões de segurança e confidencialidade da informação que é particularmente sensível numa rede deste tipo (fls 6 do parecer de António Cruz Serra, Carlos Salema e Luis M. Correia)

... que leva Dias Loureiro e Ricardo Espírito Santo a terem razões para sorrir. Confia-se, e pronto.

Portugal também é assim.

Publicado por Manuel 13:41:00  

4 Comments:

  1. josé said...
    Por outras coisas bem menores, fizeram-se inquéritos parlamentares...

    Por esta, que aparentemente é um gato escondido com um rabo de fora, felpudo e gordo, nada de nada.
    No pasa nada!
    Este país liga nada a estas coisas.
    O mensalão, ao pé disto, parece uma brincadeira que as democracias inventaram para se legitimarem e fazerem de conta que governam em nome do povo que elege.

    Por este andar, a III República dura pouco- e não vai ser pelas razões que o Alberto João Jardim enumera, pois essas razões são exactamente as que aqui se pôem em causa.
    A nossa democracia não existe enquanto modelo aperfeiçoado. Chamem o que quiserem, mas quanto a mim existe apenas uma única e simples expressão: regime corrupto! Mais do que o de Salazar e Caetano- e meço as minhas palavras.
    Anónimo said...
    Levei algum tempo a ler toda a documentação...o facto de estar nada familiarizado com a terminologia utilizada e de não ter conhecimentos técnicos a um determinado nível complicou muitas coisas. Ficam de resto as inequívocas evidências de que se agiu já precipitadamente...suspeita-se naturalmente dos obscuros motivos que levaram a tal precipitação
    E said...
    Depois de ler toda a documentação, fico com a ideia geral que o governo, demissionário à altura, realizou um acto em princípio proibido, mas que excepcionalmente devia ser permitido. Portanto, legal é, e não vejo qualquer lavar de mãos do António Costa do MAI, apenas o legitimar do processo, que sublinho, essencial para Portugal e para a integração dos sistemas de comunicação de segurança e manifestamente necessário para acompanhar a evolução que este tipo de redes de comunicações móveis está a ter na Europa.

    A interoperabilidade com os serviços de emergência e segurança dos estados vizinhos e restantes da Europa é necessária. Com os fogos a acontecer pelo País, até é uma grande ajuda haver um meio de comunicação compatível com o serviço de protecção civil espanhol, não acham? Não por descrédito dos bombeiros portugueses, mas porque Espanha têm maior dimensão e maior capacidade disponível - em princípio - de combate a fogos florestais.

    Quanto à nomeação da Motorola, PT Venture, SLN, Datacomp e Esegur como o consórcio ganhador, acarretando 538.2 milhões de Euros, não vejo problema algum, visto um consórcio semelhante já ter ganho concursos na reequipação das Forças Armadas e, vá lá, já detém experiência e por certo não são nenhuns saloios. E além disso, como é um processo que vai levar 5 anos, de certeza que vão realizar o upgrade do sistema Tetra para o Tetrapol, com economias para a operação e manutenção do sistema.

    Outro assunto que aborda a exclusão das redes públicas. Devido ao carácter de alta disponibilidade, o facto de não ser em si uma rede comercial e ter que operar em bandas intermédias entre 300 e 400 Mhz exclui, por questões de interoperabilidade, a rede das operadoras TMN, Vodafone e Optimus. E também as restantes redes de trunking a operar em Portugal,muito devido à norma CDMA, ineficaz em termos de encriptação e cobertura mínima por cada célula. Isto é, tudo questões técnicas.

    Por isso, não fico nada admirado que o preço seja bastante elevado, construindo uma rede móvel de raiz, quando comparado com congéneres europeias - Noruega 450 milhões de Euros para uma população de 5 milhões de pessoas.

    Há outras boas histórias, mas esta, não chega para ser intitulada de "mensalão".
    Anónimo said...
    Pelo exemplo dos comentários, parece que ignorância é uma doença contagiosa em Portugal.

    Os caros "Bloguistas" falam sobre o que não sabem, procuram informar-se mas, como possuem mentes condicionadas, não percebem nada do que lêem. Se calhar, deveriam estar mais concentrados na solução e não no problema.

    E a solução é: Portugal quer ou não ter uma rede própria de comunicações “decente” para os serviços de emergência e segurança? Então se sim, o que fazer para a ter?

    Estar sempre a mandar abaixo tudo o que se faz, é retrógrada. Necessitamos é de resolver problemas, não arranjar mais uns quantos.

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